quinta-feira, 29 de junho de 2006



Frio de ferrugem

Não precisamos sentir medo ou vergonha!
Não é uma dor eterna...
Viver é uma oportunidade em movimento...
A vida é um vivo processo de se tornar!
Quando eu tinha 10 anos o abuso já acontecia há pelo menos 5 e eu já demonstrava claros sinais de que algo de errado acontecia comigo.
Tinha despencado de rendimento na escola, dificuldades visíveis de aprendizagem, era uma criança que evitava se socializar com as demais, já tinha tentado fugir de casa, mal falava, andava arisca e cabisbaixa. Havia algo fora do lugar ali.
Apanhei muito da minha mãe biológica porque ela me chamava de preguiçosa, repetia que não queria aprender e ser alguém na vida.
Quanto mais ela me batia, mais me fechava no meu casulo de proteção, num espaço onde pudesse sonhar, onde pudesse ver saída daquela situação.
Aos dez anos já estava envolvida na teia do medo, da coibição.
Detesto tabuada de 7,8 e 9, nunca aprendi...
Apanhei muito na cabeça para decorar, e quanto mais apanhava, menos aprendia, chorava compulsivamente num soluço que atingia muito mais minha alma que a meu corpo.
Desenvolvi uma técnica associativa de aprendizagem muito particular. Fazia combinações de coisas, fatos, cores, estímulos para que meu cérebro pudesse desenvolver seus talentos cognitivos.
Só assim aprendi a ler, escrever e a tomar parte das cosias técnicas da vida.
Minha família tem a peculiaridade de ser matriarcal, com a figura masculina supostamente ausente no papel do homem, mas com as funções masculinas sendo executadas pela figura feminina.
Eu tinha 4 referências filiais, mas nenhuma identidade filial.
A minha cabeça era um emaranhado de confusões explodindo a cada 2 dias num intercâmbio de papéis. Cada pai e mãe tinham a sua função, por assim dizer.
Um pagava a escola, outro escondia chupetas e me paparicava, outro era o coibidor, outro ensinava as tarefas de escola, etc, etc, etc.
Esses papéis se intercalavam e se complementavam.
Era como se eu tivesse saído de dois espermatozóides e dois úteros ao mesmo tempo.
Agora imaginem a confusão na minha cabeça: some-se a isso um quadro de bullyng, assédio moral e violência sexual.
Tinha que ser uma criança “estranha” mesmo.
Quando eu tinha 11 anos meu pai biológico foi embora de casa.
Por incrível que possa parecer, ele apanhava da minha mãe e com o agravamento do desemprego, foi para sua cidade natal.
No dia em que ele foi embora, meu pai se dirigiu até a escola em que estudávamos eu e meu único irmão consangüíneo, que é 3 anos mais novo que eu.
Meu pai foi se despedir dele e pedir que ele assumisse a casa, porque ele dali por diante seria o único homem... Nunca engoli isso!
Meu pai foi embora, não se despediu de mim, e ainda por cima conversou de homem pra homem com meu irmão, que não tinha idade nem pra dizer o número do telefone de casa.
Queria ser reconhecida como ser humano independente de ser mulher ou homem. Já sofria tantas barbaridades, pensava que se ele tivesse me dito o que ia fazer, eu teria ido com ele.
Àquela época, meu pai biológico era um herói pra mim...
Um herói de areia desfeito naquele momento.
Nem ele fora capaz de me proteger e me salvar do meu tio...
Me sentia abandonada novamente, entregue às mãos do meu tio que se aproximava de mim cada vez mais, se sentindo meu dono e senhor.
Afundava no processo de abuso, sem forças pra dizer palavra que fosse ação, me abandonava no caminho e me escondia, me tornando cada vez mais esquisita, dando cada vez mais sinais de estranhamento e solidão.
Vivia doente quando criança porque me sentia segura dentro do hospital.
Lá dentro meu tio não podia abusar de mim, então passava uma semana internada, duas em casa, depois voltava ao hospital e ficava nesse movimento incansavelmente.
Não tomava banho, não sorria, não penteava o cabelo, não brincava na rua, não tinha amiguinhos a me visitar em casa, nada!
Eu só estudava... apenas isso. Entrava cada vez mais no meu mundo buscando um momento, um espaço de proteção em que em de fato me sentisse segura.
Comecei a pensar porque tinha nascido, pra sofrer? Nunca acreditei nisso!
Era atribuir um valor humano demais a um Deus que sempre me foi amoroso, amigo.
Falando de Deus, minha inocência infantil é de uma delicadeza!!!
Quando criança, acreditava que Deus era um homem. Como toda criança, eu era louca por balas e doces, saía escondido pra comprá-los na bodega da esquina. Minha mãe brigava comigo por conta das cáries, do verme, etc.
Ela dizia que se eu comesse escondido, Deus que era muito íntimo dela, ia ver e contaria pra ela. Como eu achava que Deus era um homem, ia comer no banheiro porque homem não acompanhava a mulher no banheiro, meu segredo estaria seguro.
Foi quando rompi meus laços com esse Deus humano...
Havia um homem na minha vida que não só entrava no banheiro comigo, como abusava de mim da maneira mais violenta e vil possível.
Fiquei sem referência de fé por muitos anos, desde a mais terna infância até a juventude quando reencontrei Deus mais amoroso e menos humano.
Mas a imagem lúdica e pueril da criança que acredita na simplicidade do respeito entre os seres, é tamanha que me emociona até hoje, basta recordar pra sentir.
Recuperar minha história é também reaprender a amar minhas pecinhas, os pedaços de mim que se somaram nessa trajetória, me transformando na mulher forte que sou, é também olhar para trás e não se envergonhar dos passos idos, ou sentir pena do caminho trilhado...
O que foi passou já foi nada vai mudar isso.
O que fica da experiência do tempo é o aprendizado da maturidade.
Quando saí do alcance da minha família, rompendo aquele ciclo de violência vivida no cotidiano, escapei do alcance da mão do abuso, mas as conseqüências dele, o padrão de co-dependência permaneceu grudado à minha trajetória até quase agora, meses atrás, quando decidi por mim, quando percebi que era necessário me desligar dessa tomada enferrujada e fria.
O ato de fazer esse desligamento é algo que precisamos fazer frequentemente, devagar e sempre, sem pressa de chegar, sem medo, lutando só por hoje e por agora, e o fazemos quando decidimos por nós, quando lutamos para viver sem o peso da culpa, do medo e da vergonha do abuso.
Para viver nossas próprias vidas, precisamos sentir nossas emoções sem a carga da vergonha e da culpa, precisamos desse enfrentamento com nosso quarto de porão, com nossos zumbis de plantão, até que nos desliguemos desse objeto de peso e dor.
Não somos doentes, não somos alvo a vida inteira de abusos outros e co-dependência.
“O segredo é não correr atrás das borboletas!
É cuidar do seu jardim, pra que elas venham até você!”