quinta-feira, 13 de julho de 2006


Pele de Cristal

Nada me difere de ti...
Apenas a geografia estática e inalterada salvo pela ação da mão do ser humano, que mesmo sem alterar a distância, muda a paisagem a seu favor...
Mude sua paisagem...
Muito a comemorar nesse dia...
Estou sim feliz, sem nenhum vácuo de sombra, sem nenhum sentimento carregado de medo, de apatia, nenhuma carga densa a me espreitar os novos caminhos.
Estou feliz comigo mesma, sinto-me bem e inteira ao olhar para mim nessa jornada de reconstrução, libertação e cura.
Nesse enfrentamento com o holocausto da dor, com as conseqüências do abuso sofrido, vi muitas coisas dolorosas no caminho, muita poeira batida, já fazendo parte dos passos dados, , tinha vergonha de mim e do meu corpo, da minha voz, da minha vida, vivia submersa em muitas mágoas e assuntos inacabados, muito rancor e raiva, muita raiva, principalmente de mim, haviam muitas cobranças e muita culpa.
Tinha receio de enfrentar a verdade e ter vergonha de mim, de uma menina fraca que não soube lutar, que não soube o que fazer com a própria vida.
Quando comecei essa jornada não sabia o que ia encontrar, mas fazia um falso e pesado juízo de valor de mim, carregava o peso e a responsabilidade do que ma havia acontecido na infância e adolescência...
Mas eu sabia que seria assim, que no início teria medo de não conseguir, de não superar as dificuldades, mas mesmo assim, decidi enfrentar esse novo caminho que se abria à minha frente com garra, como se fosse a única saída... Segui cabeça e peito abertos, mente e corpo abertos às novas perspectivas de viver.
E deu certo...
De pronto, avistei uma mulher gigante, sempre agarrada à vida, apesar das tamanhas adversidades, das auto-sabotagens e dos inúmeros medos, do meu confuso modo de me manter viva.
Afastava o que era bom porque tinha medo de vivê-lo, além de acreditar que não o merecia e que de já estar habituada a viver naquele carrossel interminável e violento de torpor.
Hoje olho para trás com poucos resquícios de vergonha e medo... o que vivi já foi, pertence ao ontem, e não poderei jamais alterar o que está na tela.
Mas posso fazer muitas coisas a partir dessa fato específico, dessa tela pintada pela mão invasiva da violência sexual intrafamiliar. Posso a moldura, ou quem sabe mudar o quadro de lugar, ou até mesmo ver outras efígies dele, que antes não percebia, ou quem diria, posso pintar um novo quadro... posso, eu posso!
Quão significativo esse verbo, essa ação direta de intervenção oportuna e minha: eu posso!
Percebi que posso mudar minhas idéias e que posso transpor os fantasmas que habitavam meu cemitério particular, cultivado todos os dias por uma culpa e pela vergonha que nunca foram minhas.
Via a dor como única fonte onde buscar rotina, onde buscar atitudes, comportamentos, reações, padrões...
Seguia como num ditado rítmico, a acompanhar a cadência da dor e da auto piedade como única forma de levar e experimentar a vida...
Cansei de me esconder, de driblar minhas digitais fortes e doces, cansei de me punir por um crime que nunca cometi e que não me dispus à cumplicidade em nenhum momento, sob qualquer hipótese.
Pele de cristal é a alegoria de uma mulher que saiu da caverna da dor e do medo absoluto de cara aberta, corajosamente, é a alegoria da caverna dessa mulher que percebeu enfim que podia ser livre, ser leve, que a justiça primeira deveria estar dentro de si a libertar-lhe os passos...
A violência do abuso sexual me invadiu e me coordenou os passos e a vida por longos anos... Não mais!
Estou viva, sou dona de minhas idéias, de mim mesma e da minha vida, de como quero vivê-la, de o que fazer para ser o que eu quiser ser, leve, feliz, um ser mais essencialmente humano nessa experiência de viver...
O que eu quero ser está dentro de mim!
Dei poder a muitas mentiras que ganharam força e tornaram-se verdade, uma verdade de papel e ilusão que me tirou a saúde física, emocional, mental e espiritual muitos anos.
Lutei por mim mesma...
Tenho me percebido uma mulher gigante nessa caminhada de redescobrimento e refazimento do meu quarto pessoal, onde nesse caminho de amor e auto perdão, prefiro retirar a poeira da dor e deixar que as cicatrizes permanentes me acarinhem e me balzamizem o fôlego e os passos.
Muito a comemorar...
Meu 1º ciclo de libertação, meus primeiros passos dados como Helena verdadeiramente, não como Lelezinha machucada, ferida e tomada pelo absurdo da dor imbatível e excludente...
Me excluí do prazer de viver a leveza da vida, de curtir a delícia de ser humana, de ser quem sou.
Mas lutei por mim e comemoro hoje o sorriso verdadeiro e largo na face emocionada.
Venci meus primeiros fantasmas, venci a mim mesma nesse primeiro round de viver!
Tenho muito orgulho de mim, não me envergonho de ter sofrido violência sexual, não tenho mais aquele medo injustificado, meus pés estão tranqüilos no chão, caminhando sem pressa, com alívio pela leveza que retirou o peso e a vergonha das costas ressabiadas.
Foi sim uma experiência muito ruim...
Mas tenho percebido que tudo é experiência e que o que te faz caminhar é o que movimento que você faz com essas experiências, é como você as vê, como reage a elas e partilha o efeito dessas experiências nos seus espaços de convivência.
Orgulhe-se de si mesma, não se envergonhe pela história dolorosa que trazes consigo...
“Experiência não é aquilo que acontece a um homem.
É o que um homem faz com o que lhe acontece.”
Acreditando na nossa capacidade de ser mais, na nossa capacidade de viver a experiência humana em sua plenitude, é que chegaremos a perceber as belezas de nosso espaço interior.
Poderemos ver que no nosso quarto pessoal, além da dor e das conseqüências dela, há as ferramentas de beleza, de resiliência e força, de coragem, de auto amor e auto perdão.
Nesse quarto pessoal estamos nós em essência de espelho e humanidade e estamos sim aptas à vivência do caminho luminoso de reconstrução, libertação e cura!
E que venham as borboletas...
Feliz dia de Helena...